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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sinal aberto para a arte

Publicado em 2011

Raul Espartacus ajudou a melhorar uma esquina através da ocupação com seus números de malabares, mas acredita que para ser artista de farol é preciso mais que jogar claves.

Foto Divulgação
Do meu apartamento, no terceiro andar, ouvi e assisti por muito tempo o malabarista que fica no farol no fim da rua, uma das mais movimentadas do Tatuapé. Tão alto quanto ele fala, joga as claves tradicionais e as com fogo, mas fui conhecê-lo e ouvir de perto o que da minha janela não conseguia distinguir. “Senhoras e senhores, com vocês o maior espetáculo da esquina”, diz Raul Espartacus antes de cada apresentação durante os minutos do farol vermelho.

Raul, descobri logo de cara, não é apenas malabarista. É também palhaço, estudante de história, poeta e defensor da arte como transformadora social – e por tudo isso, um dos responsáveis pela melhora da segurança naquela esquina. Há 15 meses, ele é um dos três artistas que se revezam no local. A negociação é feita pelo bom censo e respeito: quem chega primeiro fica e às vezes, eles até trabalham juntos.

Há três anos, naquele cruzamento só havia movimento de carros sempre de janelas fechadas porque, principalmente de noite, o cruzamento era desabitado e com frequentes casos de assalto. As mudanças começaram quando foram abertos dois postos de abastecimento, um de cada lado, e uma farmácia 24h. Vieram junto uma boa iluminação, a movimentação de pedestres, vendedores ambulantes e a arte, claro.

A imperfeição conveniente de ser palhaço


Raul imita motorista que joga lixo pela janela
para cutucar o mau hábito com bom humor
Sempre caracterizado de palhaço, Raul faz malabares e esteques (como se chama no teatro peças curtas e com poucas pessoas) bem humoradas. Ele não quis se restringir ao malabarismo, como é comum em muitos faróis porque acredita no poder de comunicação do palhaço. “As pessoas dos carros não se reconhecem vendo o malabarista sério”, diz.

Ao atuar, ele pode interagir com as pessoas e com os elementos da cidade. Se ouve uma buzina de repente, finge que se assustou, tropeça e provoca o riso nas pessoas ao seu redor. Raul acredita que o palhaço permite o erro sem constrangimentos porque se derruba as claves no chão, dá risada faz uma brincadeira e continua. “O palhaço desconstrói a ideia de que tem que ser perfeito”, diz.

E há o carisma de ser palhaço. Raul afirma que essa figura é reconhecida e respeitada por todas as classes sociais porque está ligada a momentos de felicidade o que facilita a segurança de seu trabalho. Ele conta que é comum chegar no farol e ver gente com “pinta” de assaltante, mas que vão embora quando ele chega pra se apresentar. “Já teve nóia que me viu e falou que ia sair para não me atrapalhar”.

Artistas como Raul ocupam as ruas e leva segurança, mas sofrem preconceito de quem os vê como marginais ou “meninos de rua”, como diz. Por isso, ele faz questão das roupas limpas e da maquiagem bem feita. Mesmo assim, há quem feche a janela do veículo ou o ignore. “Às vezes fico na frente do carro, a pessoa finge que não me vê e eu me sinto invisível. Quando passo para recolher o dinheiro e tento chamar a atenção, a pessoa vira a cara ou mexe no celular. Aí é pior do que ser invisível: é sentir que você incomoda”.

A sua função enquanto artista, como ele mesmo explica, é transformar esses olhares e contestar o que se enxerga como realidade. Suas esteques têm criticas sutis junto ao humor, por exemplo, quando ele imita um motorista que joga o lixo pela janela. O artista já ouviu crianças dizendo “olha pai, igual você faz” ou motoristas apontando o carro do lado que segundos antes jogou o cigarro para fora.

Outra esteque que apresenta é sobre o tempo (ou a falta dele). Depois de correr, o palhaço para e propõe um momento de relaxamento e meditação no meio da rua. “Nas cidades o tempo é muito exigido. As pessoas dormem menos para produzir mais e o farol é onde elas tem obrigatoriamente que parar. Eu proponho um antídoto a essa correria, uma proposta de sair do mundo regrado e aproveitar a arte e diversão”.

Hoje, Raul é seu próprio patrão e rege seus horários e salário. Fica cerca de três horas por farol. Mais que isso é cansativo, diz. “Achei o meu próprio ritmo de tempo com o malabares e vivo num tempo regido pelas batidas do meu coração” diz dando pistas de sua poesia.

Poesia, pão e palhaçada

Agradecimento antes de
passar o chapéu
Desde a adolescência Raul foi ligado à arte. Declamava e entregava panfletos com poesias de caráter político em faróis, bares e no transporte público. Aos 19 anos, era entregador de pão “aqueles que pedalam distribuindo logo cedinho e acordando todo mundo ‘olha o pão!’” e encontrou um amigo que já fazia trabalhos como circense em uma trupe itinerante. Como Raul nunca abandonada a poesia, o amigo o convidou a ter um emprego “para nunca mais depender de patrão”. Raul topou na hora. E dias depois, fecharam a parceria do trabalho em dupla.

De 2004 a 2005, eles trabalhavam juntos como mambembes. Fizeram até uma temporada pelo litoral catarinense com apresentações nas praias aliando o bom humor de palhaços com conscientização ambiental. Falavam, por exemplo, sobre a importância de não deixar o lixo na areia e coloca-lo em saquinhos.

De volta à São Paulo, Raul se deu conta de que no sul, os mambembes são mais bem vistos. Morador da 3a. Divisão, no extremo leste da cidade, escolheu o Tatuapé por considerar um bairro com pessoas de maior instrução e que colaboram mais e com mais dinheiro.

Sobre o valor de sua arte, Raul diz que faz um trabalho sutil ao mexer com lúdico das pessoas sem vender um produto. “Estou apenas dando um momento de abstração. Um simples olhar e um sorriso que provoco são a chave para mudar a engrenagem sistemática do cotidiano, da rotina”.

Hoje, na rua da minha casa, quando o farol fecha, as janelas dos carros se abrem para encher o chapéu de Raul enquanto ele diz: “A contribuição é espontânea para a arte contemporânea”

Foto Divulgação

Fonte: http://www.artemudarua.com.br



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